sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Em jeito de crónica de uma viagem à Ilha do Fogo

Do outro lado das nossas ilhas (I - II)


Passei mais um fim-de-semana, de trabalho, no duro, na Ilha do Fogo. Não é que estou pegando o gosto à Ilha, descobrindo-a, bela e agreste, acre e doce, indomada e ainda por desvendar, sempre, a imponente Ilha do Fogo, ilha do vulcão. Ilha do vinho, do queijo e de meninas moças lindas e sonhadoras com postais, dólares e “documentos” dos EUA, passando, certamente, pela Cidade da Praia das conversas e contos dos primos e enteados que um dia partiram e nunca mais voltaram e dos que por aqui vão passando, de quando em vez, para uma estadia de curtíssima duração, entre um projecto e outro, dos tantos que ainda não conseguiram tirar esta Ilha do marasmo em que, durante muito tempo, tem estado submersa e do qual, pouco a pouco, tenta acordar-se, nos últimos tempos, qual gigante adormecido no tempo entre as repúblicas.

São as primeiras horas da Segunda-feira, um pouco depois das quatro da manhã. O sono anda há muito perdido no tempo do não mais voltar quando, finalmente, o barulho dos noctívagos vai-se esvaindo na expressão do ronco, porventura, da última moto da noite, que se perde no manso sussurrar das ondas aí perto, mas sempre, sempre dentro de nós, os ilhéus. Tudo está sereno, como dizem, ali ao lado, na vizinha e irmã do infortúnio, mesmo assim longínqua, ilha Brava. No quarto simples, no portátil na mesinha de cabeceira, Lulu Santos me anima com a música “Como uma onda no mar” e eu me entretenho cantarolando baixinho o estribilho “tudo passa, tudo sempre passará” quando me vem à memória o interessante dedo de prosa que entretive com a moça do bar, enquanto massacrava as minhas costas tentando finalizar, no portátil, entre um drink e um chat, uma apresentação para hoje, mais logo às duas da tarde.

Ela é mais uma das muitas moças, de carinha bem-feita, sorriso fácil, conversa fluida e look fashion que trabalham nos bares, restaurantes e pensões neste lado das ilhas. Gostei dela; talvez por causa do sorriso cativante, talvez por causa dos olhos verdes de esperança. Ofereço-lhe um drink fazendo a vez do forasteiro simpático e, puxando um pouco a conversa, entre um trago e um ou outro esporádico cliente que entra e sai, a moça vai desfilando um autêntico rosário da história da vida dela que, sem dar muito a perceber, vou apreciando com um real interesse e um misto de pena, indignação e impotência. Está na fase final do teenager e sente-se que tem aprendido duramente com a vida, uma vez que longínquo já foi o tempo em que ainda aprendia num banco de escola. Não conseguiu ir para além da sexta classe. Levanta todos os dias às seis da manhã para estar no batente às sete em ponto e só deixa o local trabalho, catorze horas depois, por volta das dez da noite, quando não houver muito movimento. Tem um filho lindo e carente, fruto de uma relação fugaz e complicada (disse violento? As marcas no braço e na cara falam por si) com um dos muitos jovens repatriados que vão fazendo verdadeiras micro-comunidades nesta Ilha. “Passei uma vez pela Praia, vindo de S. Vicente; foram só três dias…” diz ela a certa altura. E continua. “Um dia, ainda, hei-de conhecer a Cidade da Praia, melhor, a Ilha de Santiago.” A isca parece boa mas não a mordo. “E o fim-de-semana?” Lanço eu, tentando levar a conversa para um outro assunto menos vinculativo. “Fim-de-semana?!” Responde, meio surpresa, para acrescentar, bem antes que eu entendesse o misto de espanto e interrogação dela. “Só saio daqui por volta das dez da noite, se não houver movimento.” Vaticina ela. “E o domingo?” Contraponho, firme. “Qual domingo!” “É sempre a mesma coisa.” Afirma ela fatidicamente. Aí não contive o meu espanto e alguma indignação e retorqui.” O quê? Você trabalha todos os dias, de Segunda à Segunda? Não é possível! Será?! E quanto ganha?” 
(continua...)

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